segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Cordel

Clara dizia que é dificílimo manter o peito aberto em todos os passos. As raspas do que se é sempre incomodam alguém e na maioria das vezes não é fácil se deixar levar pelo mar, como quem não se importa com isso de ter um ponto no infinito para onde se vai avante e sempre.
Vozes tolas de quem fala para quebrar muros alheios, mas que na verdade quebra a si próprio, sempre cruzavam seu caminho, num barco magnífico que por fim se fez seu, pois conhecia dele cada furo, cada talento e a direção do vento que mais amava sentir.

Um dia começou a escrever cartas mal feitas com gosto de ontem, que não eram para ninguém, mas para si mesma. Quem sabe ainda fosse para um amigo que vivia tão longe que pouco ou nada se lembrava dele, no que diz respeito ao que se guarda de concreto. Suas memórias eram como luzes: intocáveis, em mil cores e sinestésicas, mas amorfas.

Milhões de vezes tentaram sugar o sabor dos seus sonhos.
Teve a sorte triste de ter de carregar seus medos nas velas do barco e levá-los consigo sempre, o que fazia com que fosse perdendo a fé na chegada de, um dia quem sabe, um cais de calma, que temia não ver nem no cair da sua última noite.
Apesar de tudo, amava. Amou, amara, acima de qualquer tempo. Numa fé cega e linda, era uma beata dessas coisas de pele que só quem sente, sabe.

Clara dizia que coragem é a voz dos mudos. Para ela, ler tinha sabor de janela e escrever era como encarcerar o tempo, em riscos.

Não queria chegar ao fim dos seus dias e ser apenas a ternura de alguém sem passado, que dorme em lápides.

Viver era estranho demais e ainda é.
Clara sabia que podia encher suas malas com todo o discurso pesado do mundo, mas preferiu mergulhar na delicadeza das suas cartas e na beleza desse há-de-ser-tudo, que é estar vivo, até o fechar dos seus portões.