sábado, 20 de dezembro de 2008

Rodapé

Sabe como é, meu bem, a tragédia que é estar em mim me consome neste dia seguinte. Ainda há pouco, risadas e divagações belíssimas nos deixavam mergulhados e soberbos, dionisíacos, completos. Agora amanhece, é frio, a cabeça lateja, sinto o refluxo das palavras que esparramei pela alvorada e que agora descem garganta abaixo, rasgando o peito como um castigo merecido. Nossa valsa de sinceridades sem-fim, marca de uma maturidade forjada que nos impusemos, hoje tornou-se dores evitáveis, arrependimentos crônicos, feridas que não se fecham.

Te peço.
Me conte algo bonito, sobre um amor adolescente, sorriso ingênuo, uma moça de saia dançante, um beijo de adeus. Algo lindo, que desperte minhas esperanças e me faça perder a vontade de adormecer por tantos séculos.

Temia, mas vivi a ignorância de cair novamente nas velhas verdades, chegar ao cume em que todos chegaram. Depois da noite intranquila em casa alheia, reviver as memórias embriagadas de um eu-em-alfa que não sabe aonde ir mas que abraça o mundo num trago, que não-lúcido sabe se ver confortável no infinito de um quintal, num amor-tolerância que é família, na calmaria de um colchão na sala. A vida nesses minúsculos gostos que nunca alcançei na sobriedade, por ser tolo e quadrado, mas que manejo com maestria quando aluscinado, fora do mundo, olhando por cima, faz-se senhora das cores que não desbotam nunca. Pelo contrário, tornam-se cada vez mais escarlates, gritantes, explícitas. Uma felicidade que acorda meus sonhos, reencarna delírios e reduz as distâncias. Me faz rei.

Depois de romper todas as barreiras do pensamento intimista e mágico, arrancar a pureza de um refletir imenso e gesticular demais, vemos que andou-se muito e em círculos, e cá estamos de volta ao ponto de partida. Doce clichê do que somos.

Descansemos, querida. O tempo é ardiloso, atroz, e reconstruirá num lapso nossos ânimos desgastados no pós-festa. E quando for noite outra vez, e todo esse ontem for engolido pela memória, buscaremos sentir novos ares mas talvez só encontremos os mesmos.

É uma escolha, meu bem, colorir o velho todos os dias e cumprir a destreza de viver minúcias é como garantir ter um álbum de família, café quente na cama e domingos menos cinzentos. Fazer-se rotina piedosa é amarelar os feriados no trabalho, rasgar calendários e buscar incessantemente, não a resposta, mas a pergunta, num tristíssimo durante que é fim.

Enxerguemos nas pequenas marcas o mais que nos une.
É noite. Os espíritos de tudo que há e arde no mundo estão soltos, temos os remos e toda uma madrugada-rio para ferir.

É a nossa sina, entreguemo-nos a ela.