segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Anistia

Cada palavra é uma flecha perfurando todos os peitos ousados à frente. O ano vai morrendo nessa ilustre convenção de mundo que criamos e com ele muitas de nossas histórias se afogam no mar de um passado que, de repente, se lacra com os seus na prateleira abaixo, de etiqueta perfeita, na qual hei de mergulhar por milênios e milênios a fio.

Toques de lábios e bilhetes na escola. Mãos apertadas e encontros furtivos. Pedestais e cadeiras de bar. Relaxo meus braços e me deixo ferir por mais um peso dos anos que findam e vêm se juntar a esse infinito de cores que enfraquecem. Vão engessar suas aretas e se tornar saudosos passados, atentos aos meus infinitos chamados.

É hora de arrumar o quarto.
Novas caixas fragilíssimas vêm chegando para afogar velhos ânimos e desposar minhas saudades viúvas.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Entre vírgulas, ponto.

Amarrado aos mil nós de cores que são todos em mim, imerso em cada sorriso falso de amigo e em colo de mãe. Cada bloco da alma se decompõe no meu momento mais íntimo e a vida continua a correr brava e sempre, como um trem sem estação. Romper de luzes em datas comemorativas, embriagar-se escondido, hipocrisia por hábito, amar sem dizer. A rotina consome cada fôlego novo, que a cada dia desponta magnífico mas mingua até o cair da noite.

Sou eternamente espera. Do amigo das mãos apertadas, do amor que exala canções. Sou tudo que me envolve, desde nosso último beijo. Tenho tido tempo para sonhar. Tempo para reviver minhas hipóteses, aliviar o medo das rugas, ser o pó que nos tornamos. Pena.

Desejo mandar notícias que penetrem seu peito frio numa noite tranquila.

Estou em mim, como sempre. Rememorando nossos velhos toques e percebendo que tudo aconteceu na sutileza de um fim-sem-marcas. Você se foi como quem morre dormindo e assim sequer pudemos perceber o vão que se abria sob nossas pernas, então juntas, desvendando os novos caminhos velados e distintíssimos que traçamos para nós. E assim, como quem desata as mãos e rompe um destino, não nos enxergamos mais.

Chorei, intensamente e por vezes, quando te carregava em mim: um fardo de vícios, amores brutos, nós rastejando pelo chão, retorcidos de dramas, rindo alto, dançando desejos de um soar tão nosso quanto se pode ser. Numa vastidão de sentires que tento alcançar na memória, mas que são impossíveis de serem tocados novamente.
Também assumo, não hei de perder nada nisso: tenho saudade de nossos beijos negados, da cinematografia forjada, do tocar de corpos vendo seus olhos borrados, o vestido preto chegava quase à ponta dos pés descalços que tocavam o chão. Meus dedos de garoto tolo e sentimento de homem, seus lábios de letras quentes, de que fui cativo. Meus fantasmas.

Eu sei, me disseram: todo fim, por fim chega.

O som do vento engole o meu pranto, por onde passo, inconvicto.
Desfaço-me dos velhos vultos e de tudo que me cansava em você, livre para seguir em frente mas começo a sentir que não há peso maior do que o peso do nada.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Rodapé

Sabe como é, meu bem, a tragédia que é estar em mim me consome neste dia seguinte. Ainda há pouco, risadas e divagações belíssimas nos deixavam mergulhados e soberbos, dionisíacos, completos. Agora amanhece, é frio, a cabeça lateja, sinto o refluxo das palavras que esparramei pela alvorada e que agora descem garganta abaixo, rasgando o peito como um castigo merecido. Nossa valsa de sinceridades sem-fim, marca de uma maturidade forjada que nos impusemos, hoje tornou-se dores evitáveis, arrependimentos crônicos, feridas que não se fecham.

Te peço.
Me conte algo bonito, sobre um amor adolescente, sorriso ingênuo, uma moça de saia dançante, um beijo de adeus. Algo lindo, que desperte minhas esperanças e me faça perder a vontade de adormecer por tantos séculos.

Temia, mas vivi a ignorância de cair novamente nas velhas verdades, chegar ao cume em que todos chegaram. Depois da noite intranquila em casa alheia, reviver as memórias embriagadas de um eu-em-alfa que não sabe aonde ir mas que abraça o mundo num trago, que não-lúcido sabe se ver confortável no infinito de um quintal, num amor-tolerância que é família, na calmaria de um colchão na sala. A vida nesses minúsculos gostos que nunca alcançei na sobriedade, por ser tolo e quadrado, mas que manejo com maestria quando aluscinado, fora do mundo, olhando por cima, faz-se senhora das cores que não desbotam nunca. Pelo contrário, tornam-se cada vez mais escarlates, gritantes, explícitas. Uma felicidade que acorda meus sonhos, reencarna delírios e reduz as distâncias. Me faz rei.

Depois de romper todas as barreiras do pensamento intimista e mágico, arrancar a pureza de um refletir imenso e gesticular demais, vemos que andou-se muito e em círculos, e cá estamos de volta ao ponto de partida. Doce clichê do que somos.

Descansemos, querida. O tempo é ardiloso, atroz, e reconstruirá num lapso nossos ânimos desgastados no pós-festa. E quando for noite outra vez, e todo esse ontem for engolido pela memória, buscaremos sentir novos ares mas talvez só encontremos os mesmos.

É uma escolha, meu bem, colorir o velho todos os dias e cumprir a destreza de viver minúcias é como garantir ter um álbum de família, café quente na cama e domingos menos cinzentos. Fazer-se rotina piedosa é amarelar os feriados no trabalho, rasgar calendários e buscar incessantemente, não a resposta, mas a pergunta, num tristíssimo durante que é fim.

Enxerguemos nas pequenas marcas o mais que nos une.
É noite. Os espíritos de tudo que há e arde no mundo estão soltos, temos os remos e toda uma madrugada-rio para ferir.

É a nossa sina, entreguemo-nos a ela.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Horizonte

Querido amigo,

estou na encruzilhada do ser, em que estamos todos. Nem princípio, nem fim, como um fantasma. Volto a despertar meus anseios na sede de vê-los concretos, palpáveis e assim jamais adormeço. Com os olhos fundos, o café frio no estômago, o ventre que revira na tradução do medo, sou guerra. Meu caro, descobri que essa lucidez me embriaga. Eu sou todo querer, feliz na busca por algo, por tudo. Estou pronto para partir, mas preso. Tenho epopéias escritas na mente, mas me falta a clareza do herói. Tento lutar, mas não tenho causas ou, quem sabe, as tenho demais e, por isso, sufoco-me. Quero ir embora, sou tolo, não posso com essa paz de convenções.

Querido, queridos, mundo,
quero deixar de ser mil almas em um só corpo e assim não mais cansar-lhes com a melancolia mesma, ou com a felicidade que vem reprisar os meu feitos, eternamente estas. Anseio que percebam que sou eu quem fala a cada tremor de letra cadente, quero ser romântico mesmo no vento mais frio do bar mais escuro, quero ser música.
Quero estar, quando de fato estou.
Um final feliz de razões questionáveis, não quero. Mas sim, um sorriso cativante, alegria duradoura, quero falar macio, suscitar paixões e silenciá-las num peito imperfeito. Quero uma alma que envelheça consciente de si e de suas feridas, resignada com suas rugas. Quero, meu caro, a sabedoria dos que julgam, os tolos. Quero a oração dos pobres, o ar dos asmáticos, a frieza dos médicos. Entenda que busco a pureza daquilo que não se tem.

Busco ter de volta a leveza dos meus gestos, e me ser todo, todo o tempo. Mas não posso. Sequer consigo dizer que o amo sem tropeçar nos meus dogmas.

Estou num penhasco, planejo pular sem asas.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Poética

Permanecia insone pela madrugada fria, recostado à janela, absorto e novamente perdido.
Pela fresta da porta, entrecortados, viam-se seus sonhos mais belos. Largou a caixa de desesperos, presos somente pelas fendas da alma, no (para)peito, ao lado do cigarro de maço.

Mais uma vez melancólico, tomando café com a saudade, sorrindo amarelo, sem saber se era aquilo, ser triste.
Era um pobre coitado.

Daquela moldura de assistir pôr-do-sol, de onde via a vizinhança escondendo seus pecadinhos tolos, sofria com filosofias imensas: carga involuntária da vida.
Cansado de tudo, naquela sensação estranha que é viver: uma loucura interna expressa em pequenos anseios enquanto o tempo atropela os passos, um cansaço desse inominável prazer de ser-estar, que se tornou tão ingrato: quando mal chega, quer embora.

Vivia perdido em delícias fugazes.
Sabia verdades de cor e de corpo:
que os artistas não sabem envelhecer
que poesias são verdades de uma tarde
que estar sozinho nem sempre é tão bom

Sabia do pleonasmo que é dizer que um sonho acabou.

Naquela janela-moldura, contando os nós na corda das palavras não-ditas, suspirando calminho e contando até dez, escreveu uns versos.
Queria falar rápido, era todo desespero e as horas se encarregavam de romper o seu cálice de palavras belíssimas.

Um lapso e fim.

Guardou (n)a caixa. Fechou a porta e a moldura. Desbotou o sorriso.
Respirou como um pai.
E quando caiu a noite do avesso, e era dia, se levantou para mais um dilúvio de vozes e quis aquecer o peito para que suas paixões não dormissem numa nova manhã, mas era poeta, e sabia.

Sabia que um peito rasgado na noite cala os instintos, até o alvorecer de novos medos.